Viagem insólita

Viagem insólita

Trator esteira arrastando o ônibus virou rotina na rodovia que liga Barra do Garças a São Félix do Araguaia

Depois de percorrer mais de dois mil quilômetros de ônibus, atolar em trechos sem asfalto, chegamos a São Félix do Araguaia, cortamos o rio Araguaia de “voadeira” e desembarcamos na maior ilha fluvial do mundo

Chegar a São Félix do Araguaia, na divisa entre Mato Grosso e Tocantins, é uma aventura. O meio de transporte mais acessível é o ônibus. Um pequeno avião sai de Brasília uma vez por semana, mas dizem que além de caro, está sempre lotado.

Eu e meu amigo Denílson Aparecido Balbino fizemos essa aventura. Fomos de ônibus de Maringá a Goiânia. De lá, embarcamos em outro com destino a São Félix.

Até a capital de Goiás, percorremos 1100 quilômetros. De lá até São Félix mais 1200, com pelos menos 500 sem pavimentação. Com a chuva insistente, o ônibus atolou em alguns trechos. Nem sempre há trator esteira disponível para arrastá-lo. Aí, só resta paciência aos passageiros.

Em Barra do Garças (MT), começa a Serra do Roncador, onde desapareceu o coronel e aventureiro inglês Percy Harrison Fawcett, em 1925. Xavantina, Alô Brasil, Posto do Mato são algumas localidades que povoam o caminho. De repente, a rodovia não é mais negra. Acaba o asfalto. Para chegar a São Félix não depende mais do motorista. Se a chuva persistir, talvez nem chegue.

O motorista parece destemido. Mesmo que o ônibus fique sem pára-choque, numa tentativa de tirá-lo do lamaçal. O cabo de aço se parte ao meio com o arranque do trator. Dá-se um nó, os fios parecem colar. Enfim, o ônibus é arrastado. Mas tudo vale a pena, quando a estrada não é pequena, e as belezas do caminho compensam. Saímos às 17 horas de Goiânia e 24 horas depois estávamos em São Félix. Meu objetivo era entrevistar o bispo emérito da Prelazia do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, um espanhol franzino, chamado de comunista pelos grandes proprietários de terras da região.

Poesia
A entrevista com dom Pedro é outro assunto. Quero falar da viagem e das belezas do Rio Araguaia. O próprio bispo não cansa de dizer que o Araguaia é pura poesia. Com razão. Impossível descrever o encanto daquele imenso tapete azul cheio de vida selvagem.

Depois de São Félix, nosso destino era a Ilha do Bananal. Maior ilha fluvial do mundo. Suas medidas impressionam: 20 mil quilômetros quadrados, área equivalente ao Estado do Sergipe, 55 quilômetros de largura máxima e 320 quilômetros de extensão.

Durante sete meses, ela praticamente submerge na enchente do Araguaia. Por isso, os primeiros bandeirantes que navegaram pelo rio na época das cheias, confundiram a ilha com um imenso lago. Com 2.626 quilômetros de extensão, o Araguaia era chamado pelos índios de Ber-O-Can, o rio grande. Metade do ano, suas águas são barrentas, na outra, cristalina e com as margens ponteadas de praias.

JK
O ex-presidente Juscelino Kubitschek começou a explorar a Ilha do Bananal no início da década de 60. Ele ordenou a construção de um luxuoso hotel na ilha ladeado por um aeroporto com capacidade para receber aviões de grande porte.
Em 1964, os militares chegaram ao poder e decretaram a decadência do empreendimento, que passou a se chamar John Kennedy. O hotel acabou consumido por um incêndio provocado por índios carajás que tentavam desalojar, com tochas, uma caixa de marimbondos na varanda da construção.

O guia Suiá
Quem nos leva até a Ilha do Bananal é o índio Karirama Suiá Karajá, 41, conhecido por Suiá. A ilha é habitada por 2.300 índios Carajás e Javaés divididos em 14 aldeias. A maior delas é a Santa Isabel. Destino da maioria dos visitantes que chegam a São Félix.

Suiá nos leva na pequena canoa a motor, a voadeira. De São Félix até a aldeia não demora mais de 30 minutos. Às vezes, ele desliga o motor para atender o celular. É gente que chega e quer conhecer a ilha. “Estou sempre disponível para mostrar tudo que temos por aqui”, afirma.

Talvez para relaxar quem tenha medo da água, Suiá conduz a voadeira contando histórias de seu povo. Embora a maioria dos visitantes tema a sucuri, o maior perigo do Araguaia são as arraias. Uma ferroada no pé pode levar meses para sarar. Fala-se também no Candiru, minúsculo peixe que entraria pelo canal da urina se alojando na bexiga. Dizem que para tirá-lo só com cirurgia.

A voadeira desliza sobre a água. Suiá retoma as histórias. Diz que Kananxuiuva é o deus carajá que criou o mundo, o céu, as estrelas, o Sol, a Lua, as florestas, os rios e as tempestades. “Ele deu asas aos pássaros cantores e veneno às cobras silenciosas”, acrescenta.

Árvores
Um terço da Ilha do Bananal corresponde ao Parque Nacional do Araguaia, fundado em 1959, e o restante pertence aos índios. Árvores com mais de 30 metros de altura impressionam. Os pássaros chamam atenção com sua cantoria.

No local, há mais de 250 espécies de aves. Com um pouco de sorte é possível ver cachorros-do-mato, emas, perdizes, veados, tamanduás e até alguma onça-pintada, que aumentou por causa da proibição da caça.

As casas dos índios da aldeia Santa Isabel se dividem entre madeira, cobertas com piaçava, e alvenaria com telhado de amianto. Suiá diz que a maioria prefere morar à “moda dos brancos”.

As moradas cobertas de folhas secas podem estar perto do fim. A aldeia tem posto de saúde e escola. “Gostamos do conforto da civilização, mas não abrimos mãos das nossas tradições”, declara.

Índias de cabelos pretos e pele morena nos recepcionam. Uma mãe traz uma menina cheia de adereços para fotos. Alguns meninos não se aproximam. Escondem atrás da porta. Paramos numa casa para comprar artesanatos, que custam metade do preço dos vendidos em São Félix.

Evangélicos
Não é difícil ver índios com camisetas estampando frases religiosas. A influência de igrejas evangélicas é comum nas aldeias. Muitos índios estão magros, o que denota sinal de desnutrição. Embora o posto da Funai de São Félix tenha informado que há um programa de soltura de filhotes de tartarugas no Araguaia, principal fonte de alimentação de Carajás e Javaés.

Entre junho e setembro, época que não chove no Araguaia, suas margens viram verdadeiras praias com muita festa. Principalmente, na região de Barra do Garças, a 400 quilômetros de Goiânia.

Na viagem de volta tivemos mais sorte. Um pequeno avião, duas vezes por semana ou em caso de emergência, cruza o rio até Gurupi (TO). Com ajuda de dom Pedro, conseguimos um lugar na aeronave de oito assentos.

De Tocantins, viemos de ônibus pela rodovia Belém/Brasília. Apesar dos buracos, é pavimentada. O cansaço nos fez desistir da estrada de terra.

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Trator esteira arrasta o ônibus na rodovia que dá acesso a São Félix do Araguaia

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De tanto esforço para sair da lama, o ônibus ficou sem pára-choque

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O cabo de aço não resistiu e partiu-se ao meio

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Gado no meio da pista: cena comum

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A beleza dos paredões da Serra do Roncador

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A maioria das casas dos índios carajás é de piaçava

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A beleza das índias carajás encanta os visitantes

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Início da Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo

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Índio Carajá faz pose na margem do rio Araguaia

Texto e fotos: Donizete Oliveira
donijornalismo@gmail.com

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