O zoólogo sambista

Na Praça da República embarquei num ônibus com o Itinerário Plaza Shopping Sul. Depois de rodar por mais de meia hora, desci numa rua tranquila, no Jardim da Glória, em São Paulo. Cheguei à casa número 203, numa pequena vila fechada. Nela, mora Paulo Emílio Vanzolini, o Vanzo, como é conhecido.

Compositor, cantor, sambista, músico, poeta, mas ele gosta mesmo de ser chamado de zoólogo. Sua mulher, Ana, me recebe. Entrei na sala decorada com móveis de madeira bruta. Estante de nogueira européia, mesa e cadeiras de imbuia e no centro uma mesa de sucupira do amazonas. As decorações são do artista plástico Arnaldo Pedroso Horta.
Não demorou e Vanzo desceu as escadas que levam ao seu escritório. Ele me saudou entoando versos de “Maringá, Maringá”, de Joubert de Carvalho. “Que bela cidade a sua, hein!”, exclamou. “Sou apaixonado por madeira pura”, disse em resposta a minha admiração pelos móveis.

Autor de vários sambas, entre eles, “Ronda” e “Volta por cima”, é doutor em zoologia pela Universidade de Harvard, especialista em répteis. Por mais de 50 anos, trabalhou no Museu de Zoologia da USP e dirigiu a instituição entre 1962 e 1993, quando se aposentou.

Aos 87 anos, diz que seu único compromisso é ir a cada 15 dias a uma roda de samba no Bar do Filé, perto de sua casa. “Adoro esse negócio de roda de samba”, justifica-se, não sem antes pedir a Ana para trazer mais um café. Um dos três que tomou durante nosso encontro.

Ele é um dos autores da teoria dos Refúgios, nome dado às “ilhas” de mata úmida e cerrado que se formaram na Amazônia à medida que o clima oscilou entre seco e úmido desde a Era do Gelo. Ano passado, seus 153 artigos científicos foram reunidos no livro “Evolução ao nível de espécie: répteis da América do Sul” (Editora Beca e Fapesp, 704 páginas).
Para concluir seus estudos, navegou por mais de 10 mil quilômetros pelo rio Amazonas. Em busca de espécies para o acervo do Museu de Zoologia da USP. Cada viagem durava de dois a três meses.

Tanto estudo sobre a Amazônia, deixou-o cético. De acordo com ele, não há solução para a região. Vanzo costuma dizer que a saída é trancar a porta e perder a chave. “A Amazônia é muito rica e o dono (o Brasil) não usa”, diz. “O governo não tem força para protegê-la porque existe muita corrupção na derrubada da floresta. A riqueza que tem lá desperta cobiça”.
Mesmo decepcionado com a preservação da Amazônia, ele não abre mão da ciência. Diz que se tivesse de escolher entre zoologia e samba, ficaria com a primeira. “A música nunca me deu muito dinheiro, a que rendeu mais foi “Volta por cima”, mas gastei tudo em livros, que acabei doando para o Museu da USP”, conta.

O lado artístico de Vanzo começou aflorar na faculdade de Medicina da USP, onde se formou e, em seguida, foi estudar nos Estados Unidos. Ele se juntou a um grupo de estudantes que percorria o Brasil. “Nossa rotina era viajar, fazer shows, beber cerveja e amassar mocinhas”, brinca. As caravanas eram organizadas pela turma de direito, mas havia participação de estudantes de outros cursos, caso dele, que era da medicina.

Fã de Noel Rosa, Paulinho da Viola, Adoniran Barbosa e Geraldo Filme, sua receita para fazer samba não existe. Diz que se envolvia com a letra. Labuta de 24 horas. Até o tema virar música. Segundo ele, foi assim com “Ronda” e “Volta por cima”, seus maiores sucessos. “Por isso, parei”, afirma. “Não tenho mais saco pra ficar elaborando rimas, que às vezes levavam até meses”.

Sua última letra foi divulgada em 1997: “Quando eu for, eu vou sem pena”. Diz que não a fez por causa da morte. “Um dia ela vem, não é? Deito e não acordo. Se bem que já durei muito. Até mais do que a maior parte do pessoal”, reflete. Para ele, no entanto, o importante é a vida. “E da minha não posso reclamar. Tive muita sorte. As pessoas me ajudaram”.
Em 2009, a USP o homenageou. Houve lançamento do documentário “Um Homem de Moral”, de Ricardo Dias. Houve shows e debates sobre a obra do compositor.

A prosa chega ao fim. Vanzo se despede com mais uma de suas máximas: “O importante não é dar volta por cima, mas reconhecer a queda, como diz os versos de “Volta por cima”.
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O autor é jornalista e professor em Maringá
donijornalismo@gmail.com

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